Fluir – Considerado por muitos, como o maior escritor brasileiro do século XX, João Guimarães Rosa, médico e poliglota, diplomata e escritor, habilidoso e original, é quem irá temperar, neste lugar de fala, a sensibilização à formação psicanalítica.
“Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende” (Guimarães Rosa)
INTRODUÇÃO (aprender a fluir)
Em Grande Sertão: Veredas, (1956) Riobaldo narra o trajeto de sua vida, velho jagunço, a “matutar” em sua fazenda, a busca de si mesmo, por meio do diálogo/monólogo, a respeito das tragédias da vida humana. Quando se aprende a fluir… o estalido da diferença se faz ouvir.
A busca desesperada pelo sentido da vida, as situações desafiadoras da existência, as sensações de “assujeitar-se” a si mesmo, são possibilidades que Riobaldo encontra para organizar o seu próprio mundo.
A experiência do sertão, enquanto alegoria à existência humana, se revela psicanalítica”, ao sinalizar a oportunidade de se “descontruir/reconstruir”, em cada encontro – “o processo de vir a ser quem se é”.
O livro apresenta ao público coisas nunca vistas antes. O contexto das histórias se apresenta universal, ao falar do ser humano.
Das novas palavras até as sonoridades características do homem do interior ecoam n’alma da gente. Tudo isso, dá um clima de sedução à saga sertaneja.
Com seu regionalismo universalizante, Guimarães fala à humanidade, investiga o significado da vida, a relação com a natureza, com Deus, com o diabo e com a morte. A vida se confunde. A alegoria do sertão é, de fato, a alegoria à existência humana.
“ O senhor me organiza…repete Riobaldo”.
O candidato à psicanalise(aprender a fluir)
(…) para “organizar-se”, precisa se “autodisciplinar-se”, diante da diversidade de caminhos e propostas. Não basta só o instinto.
Saber a diferença entre caminhos longos e curtos, entender o mapa das estrelas e a força dos ventos, interpretar o tempo favorável e desfavorável, avaliar as descidas e subidas, considerar os momentos de descanso e continuidade. Tudo isso, se apresenta como condições necessárias à travessia.
Sensações enquanto respostas neurais e sentimentos enquanto respostas às emoções, durante a caminhada, brotarão do chão e dos atoleiros imprevisíveis, a quebrar a monotonia e a solicitar fidelidade e continuidade à caminhada.
Pensar a formação psicanalítica, é pensar honestamente, a jornada de estudo, pesquisa e prática, desde o princípio do sujeito ético – do fazer psicanalítico até a compreensão de que “as pessoas não estão sempre iguais”.
Circunscrever-se à complexidade, exige – escolha de roteiro e dos pontos imprescindíveis, projeção do itinerário e das direções estratégicas, estudo do mapa e das condições favoráveis em curtos e longos deslocamentos.
Compromissos e propósitos, como velas, içadas ao vento, conduzirão aos bons resultados.
O segredo é projetar o cenário, torcer pelo céu de brigadeiro, mentalizar a formação enquanto processo/projeto de vida e permitir-se à aventura do voo.
E, poeticamente, perceber-se a desfrutar com a imaginação a “polinização flutuante”, que da almejada vivência psicanalítica conduzirá às primeiras impressões do sentido transferencial do “fazer-saber”, do “bem-dizer”.
Para Freud (aprender a fluir)
(…) a psicanalise é uma técnica terapêutica para interpretar os conteúdos do “sujeito inconsciente” por meio da associação livre e da transferência com a colaboração e parceria de analista/analisando.
O ser humano se dá conta de suas pulsões, potencialidades, fragilidades e por isso mesmo, experimenta a sensação de que lhe falta alguma coisa. Sente-se desacomodado em direção a uma ruptura consigo mesmo.
O desejo habita suas necessidades, experimenta sofrimento e dor quando não atende aos instintos de sua natureza biológica e sociocultural, chegando ao ponto de carregar consigo sentimentos de culpa inconsciente/consciente, por não atingir o fluxo vital, sua plena realização.
O ser humano é pela sua natureza, social, portanto precisa viver entre semelhantes e para que isto se torne realidade, constrói combinados. A sociedade, com seus costumes e valores, interpreta o que é bom para todos e por isso cria uma cultura de “obrigações e deveres”.
No entanto, esses valores não bastam (aprender a fluir)
(…) para garantir harmonia necessária.
É preciso considerar para além da moral, uma ética, (determinante, motivante e orientadora do comportamento), que dê sustentação e significação a estes valores morais, fundamentando e orientando a natureza do bem e do mal.
Cresce, nestes últimos tempos, cada vez mais, a preocupação dos institutos e centros de psicanalise com a formação de futuros profissionais.
Trata-se de uma preocupação saudável e necessária, principalmente, nestes tempos difíceis e terríveis.
A pandemia, de fato, criou medos e fantasmas, sensação de incertezas e exaustão, confusão e estresses. Isolamento afetivo e social, profissional e cultural. O ser humano experimenta-se ameaçado.
De volta à formação do psicanalista…
Uma orientação significativa, à semelhança de um leitmotiv, com segredos de bons resultados, é reforçar sempre o mantra -”a análise produz o psicanalista”.
Portanto (aprender a fluir)
(…) é preciso seguir alguns passos, se a intenção é fazer diferença no desempenho profissional psicanalítico .
- Compreender o “funcionamento psíquico”, condição, mínima necessária, à prática analista (experiência em si de uma análise e/ou autoanálise);
- Garantir o protagonismo do analisando, a experiência da subjetividade importa no resgate do “desejo-desviado” (ato analítico/inconsciente);
- Entender que o saber do analista conduz o analisando à descoberta de suas impressões inconscientes(sujeito suposto saber);
- Analisar, analisar e analisar – a análise, é o “fazer-saber/bem-dizer”, coroa da aventura analítica(1) e recompensa à parceria colaborativa, analista/analisando (recalque, neurose transferencial e emergência do sujeito do inconsciente).
É necessário construir, garantir e aparentar a maturidade profissional no exercício da profissão, em termos de conduta, relação e interação, consigo mesmo, com os outros e com seu entorno.
A Sociedade Psicanalítica Ortodoxa do Brasil se orienta a partir do código de ética, aprovado pela Assembleia Geral. Aí se encontram todas as orientações necessárias para o desempenho exemplar da conduta, dirigidos àqueles filiados aos Conselhos Nacional e Regional.
Ao encerrar a reflexão (aprender a fluir)
(…) a respeito da formação do profissional em psicanalise, não tem como fazê-la sem antes passar por Lacan, discípulo aficionado a Freud e em seu legado.
Lacan procura desvincular do desejo suas inclinações pulsionais e se aproxima de outro conceito de ética psicanalítica, ao apresentar o desejo desvinculado de ideais e inclinações.
O compromisso com o desejo do analisante configura a ética da psicanalise. Bem, este assunto é complexo e instigante. O momento não permitirá mais e melhores desdobramentos, mas a dívida/dúvida pela busca do conceito e aprofundamento, deve continuar.
Lacan apresenta a ética do “desejo do analista”, segundo se pode compreender, é dele que depende o manejo do tratamento. Trata-se do famoso “pulo do gato”.
Com esse desejo, o lugar sustentado vazio, se renovará pela nova linguagem do sujeito/paciente.
Protagoniza-se, ali, neste espaçamento, “o lugar da fala, para além do bem, para além do mal” (Teixeira).
Ao se levantar o recalque, o ponto de dessubjetivação, a emergência do sujeito do inconsciente se fará presente.
Neste momento, de superação, o sujeito/paciente se torna analista e se liberta das amarras e das pseudo-justificativas, alienantes – acontece no ato analítico , o “milagre” da “autotransformação”.
Conclusão
Pensar a prática do analista é a melhor forma de pensar a sua formação. Repensar a dimensão ética do desejo, é a melhor forma de repensar o lugar da ética no mundo da psicanalise.
“Mire, veja: o mais importante e bonito, do mundo é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas.” (GSV)
FLORIPA, 16.08.23
Nota1- “Na aventura analítica, não estamos lidando, portanto, com o inconsciente do analisando e com o inconsciente do analista – o que está em jogo é o inconsciente do Outro (….) o objeto do seu desejo é suposto já estar no Outro” (Teixeira).
Referência básica
- “A Paixão Segundo G.H.” de Clarice Lispector
- Resenha: Através de um relato introspectivo e denso, Clarice nos conduz pelo universo da protagonista G.H. após um evento perturbador em seu cotidiano. A obra mergulha nas profundezas do ser, tocando em questões existenciais e no reconhecimento do outro e de si mesma. É um convite à reflexão sobre a essência humana e sua relação com o mundo.
- “Pedagogia da Autonomia” de Paulo Freire
- Resenha: O educador Paulo Freire aborda, nesta obra, a necessidade de se ensinar a aprender. Através de suas propostas pedagógicas, o livro sugere um ensino pautado no desenvolvimento da autonomia e criticidade do indivíduo, afirmando que educar é um constante ato de reinvenção e aprendizado mútuo entre educador e educando.
- “O Sertão Universal: Guimarães Rosa e a Psicanálise” de Nádia de Lourdes Nogueira Lima
- Resenha: A autora traça um paralelo entre a obra de Guimarães Rosa e os conceitos psicanalíticos, especialmente em “Grande Sertão: Veredas”. O livro investiga as complexidades do ser humano retratadas por Rosa à luz das teorias psicanalíticas, proporcionando uma leitura profunda da relação entre literatura e psicanalise.
- “Poética do Devir” de Clarisse Fukelman
- Resenha: A obra propõe uma reflexão sobre a transformação e a capacidade do ser humano de se reinventar. Utilizando-se de uma abordagem filosófica e literária, Fukelman dialoga com diversos autores e com a arte, trazendo para o debate os desafios da existência e as possibilidades de “vir a ser”.
- “Raízes do Brasil” de Sérgio Buarque de Holanda
- Resenha: Sérgio Buarque explora, nesta obra clássica, as origens e características da formação social brasileira. Abordando temas como individualismo, família e ordem social, o autor reflete sobre o “homem cordial”, figura que sintetiza a alma brasileira. A obra não apenas ajuda a entender a sociedade e a cultura do Brasil, mas também as complexidades humanas que formam a nação.