“É fácil a lembrança quando se invoca a memória.
Difícil é a angústia quando aquece a repressão”. A repressão faz parte da história do ser humano – sua presença se nota na cultura, mídia, religião, política, economia, sociedade, educação, família e em muitos segmentos, em nome do “bem-estar”.
Repressão e desejo – Talvez exista pelo fato do ser humano viver em grupo com a intenção de garantir regras comuns à boa convivência/preservação. Sua função é apequenar a violência/ódio (agressão destrutiva) e a agressividade (distúrbio de conduta).
INTRODUÇÃO (repressão e desejo)
No entanto, pela necessidade de se garantir o bem-estar, a repressão atinge individual e coletivamente o ser humano.
Basta ver a repressão, à moda brasileira, desmensurada, presente nas políticas públicas, nos tempos de pandemia – “lockdown” autoritário e longe de argumentos convincentes e científicos – direitos, de ir e vir infringidos, à saúde vilipendiados, ao trabalho negado, à educação não respeitados, à sobrevivência honesta e digna, restringidos.
“A repressão está visceralmente incluída na pauta comportamental do homem civilizado. Ela é inevitável, necessária e indispensável para a estruturação do desejo humano”. Verdadeiro paradoxo.
Permita-me traduzir a “pauta comportamental” por “consciência moral”, para melhor se entender “comportamento” enquanto “modus vivendi”.
Três conceitos se fazem necessários (repressão e desejo)
a) bem-estar, no sentido do desenvolvimento socioeconômico; b) “bem-viver”, no sentido de se colocar no lugar do outro; c) “bem-do-eu”, no sentido de se resgatar os “afetos aflitivos”.
A intenção é refletir como se dá a superação do desejo afetivo reprimido e do desejo recalcado (pensamentos, imagens e recordações) enquanto “pulsão de vida/morte”, considerando as circunstâncias socioculturais, o entorno existencial, e de modo especial, a angústia, sujeito da repressão, segundo a evolução do olhar psicanalítico.
A maior dificuldade, segundo Freud, quando se trata da natureza humana, é encontrar o lugar para a agressividade – “a violência é inerente ao homem…” (FRIEDL). (…)“é uma inclinação, constitutiva, dos seres humanos” (VILHENA).
Desde sua origem, o homem precisa controlar as forças da natureza e da sua agressividade para sobreviver, reproduzir e manter-se em segurança diante das ameaças externas.
Em seguida, o lugar da repressão(1) (ad intra, ad extra) como uma das barreiras e/ou aliada, que deve ser considerada, visto que, sua presença se faz notar antes, durante e depois de Freud.
Necessita ser interpelada por meio do diálogo construtivo, e porque não, do diálogo terapêutico, visto tratar-se de um tipo de defesa.
E na atualidade, o lugar da subjetividade (repressão e desejo)
Corre-se o risco de conduzir a um “suicídio coletivo” a história de vida daqueles que, se colocados no banco dos réus serão vitimizados por não se verem reconhecidos no exercício desta sagrada experiência.
Ainda mais, diante da progressividade do processo civilizatório, procura-se, elaborar respostas aos falsos e verdadeiros limites à sociedade, ditados por grupos hegemônicos, que política e culturalmente, de forma impositiva, intransigente e muitas vezes, carregada de autoritarismo, apresentam-se representantes e portadores do único e melhor caminho do “bem-estar social”, massacrando o direito à liberdade, à autonomia e ao protagonismo.
Hoje em dia, o “bem-estar social”, enquanto visão capitalista da realidade, é uma construção sociocultural que se fundamenta num conjunto de pressupostos, muitas vezes, em benefício da minoria usurpadora de lucros e em detrimento da maioria, produtora dos bens de consumo.
Soma-se a isso a presença dos conflitos nos encontros e desencontros, verdadeiro campo descortinado à psicanalise.
O direito a escolher flancos e bandeiras de luta, permite que cada um construa os vínculos do seu pertencimento. Quando isto não acontece, o sofrimento avança e conquista novos territórios existenciais.
Faz parte, igualmente, deste intrigante conflito subjacente – a escolha entre bem e mal. Sentir-se bem, condição necessária, apesar da excitação existencial.
Sentir-se bem é meta de consumo. É um estado psicológico agradável, que se revela à moda terrena, paradisíaca, inclusive na estética tatuada.
É instigante abordar criticamente a “pauta comportamental”, isto é, produzir uma provocação à “consciência moral”, enquanto base para se compreender o agir do homem e do seu sentimento inconsciente de culpa/punição.
Duas palavras se fazem necessárias e significativas.
Da sua compreensão dependerão desconstruções e reconstruções de velhos e novos conceitos, a fim de ressignificar o sujeito e sua consciência.
A moral, trata das regras do grupo social. A ética, por sua vez, é a teoria sobre a moral e tem como finalidade, pensar o agir e pautar as ações humanas.
Desse modo, a ética está associada ao bem. Trata-se de práticas do agir humano que conduzem ao bem-viver. O que interessa aqui é a escolha por uma ética que provoque a reconstrução de novas concepções, aprofundando o sentido existencial do estar-juntos. É preciso repensar o agir humano…mormente, a desconstrução dos preconceitos revestidos de ódio.
Curiosamente, a ética do “bem-viver” prevalece nos dias de hoje, de modo imaginário e contagiante. Curiosamente fundamenta o sentido do “eu-preciso-existir”, notadamente, à moda hedonista (2).
Com Freud, o inconsciente assume o protagonismo das decisões nas ações humanas apresentando os instintos, desejos e pulsões, comandados pelo aparelho psíquico. Aí o paradoxo(3).
A consciência moral não é mais o melhor lugar das decisões éticas. À psicanalise, não interessa pensar uma perspectiva de valores e por isso mesmo, não está interessada em buscar o bem-viver.
Segundo Netto, “a psicanaliserompe, em definitivo, com a moral filosófica e religiosa e apresenta uma ética dos atos e desejos inconscientes….”
Entretanto, a psicanalisese preocupa com a sociedade que cada vez mais diminui o espaço à compreensão do sofrimento “psíquico” à proporção que desvaloriza a dimensão da subjetividade.
Somos resultado da nossa história (repressão e desejo)
(…) de vida em busca da “fruição da vida ”, sem jamais atingir a satisfação, plenamente. Buscar o prazer não é a mesma coisa que buscar a “felicidade imaginada”.
Nossos atos são realizações inconscientes, motivações que nos movimentam em direção ao prazer/desprazer, ao suposto sentido de vida, em direção ao fluxo vital.
Segundo Freud, o ser humano não pode ser compreendido sem a dimensão da dor e da angústia. A razão psicanalítica, por sua vez, se justifica e apresenta o divã, colo da catarse, no acolhimento do sofrimento, à moda terapêutica.
Curiosamente, na bíblia, a visão que se tem do homem, na sua origem, é do homem que nasce com o “pecado” do sofrimento. Aqui, o segundo paradoxo a ser desvelado.
A cruz, instrumento de tortura, é transformada em símbolo divino… a imagem principal do cristianismo é do “ser humano sofrente”- o arquétipo humano/escopo espiritual – quando o homem se rende ao sofrimento de modo consciente, aí o acesso à superação do sofrimento psicológico e, espiritualmente “a mente do crucificado cresce na do crente”, então, ele se aproxima de Cristo, apesar da dor, física.
CONCLUSÃO (repressão e desejo)
Finalmente, de volta a Freud – vencida a etapa do prazer/desprazer, e chegando-se ao “princípio da realidade”, o desejo passa a ser negociado e, muitas vezes, será adiado. Grande passo, na evolução do homem – do instinto à cultura.
Deste modo, a realização do desejo, bem como sua estruturação, será uma experiência de superação, mesmo porque, acontece no horizonte da angústia repressiva, isto é – até Lacan chegar e afirmar diferentemente – aquele que cede quanto ao seu desejo, não abre caminho para a felicidade.
Quanto à felicidade lacaniana – quem sabe, ela exista, em outra página.
“Com certeza um dia, a humanidade avançará mais em sua evolução e transformará suas relações ‘arcaicas’, desconstruindo a competição e reconstruindo a cooperação”.
FLORIPA, 16.08.23
Notas
1- “Jeremy Bentham, o fundador do utilitarismo, argumentava que o prazer é o derradeiro objetivo da vida e que devemos produzir tanto prazer agregado quanto possível.” (FURROW, 2007, p. 119 – SALVAGNI).
2- Para Freud, os conflitos éticos vividos pelos pacientes, são na realidade conflitos pulsionais. No entanto, a viradafreudiana abalou profundamente algumas convicções a respeito das relações do homem com o Bem, exigindo que se repensassem os fundamentos éticos do laço social a partir da descoberta das determinações inconscientes da ação humana. (KEHL, 2002, p. 7, 8 – SALVAGNI).
Referências básicas
- “O Mal-Estar na Civilização” de Sigmund Freud
- Resenha: Neste clássico, Freud explora o conflito entre os instintos individuais e as demandas da civilização. O autor discute como a repressão de impulsos naturais pode levar a um mal-estar generalizado na sociedade. O livro aborda a ideia de que a cultura e a civilização podem ser fontes de sofrimento e descontentamento.
- “A Produção da Existência” de Nelson da Silva Jr. e Maria Rita Kehl
- Resenha: A obra discute como a sociedade contemporânea molda as subjetividades. Os autores exploram como as estruturas de poder, a cultura e o capitalismo impactam a forma como os indivíduos percebem a si mesmos e ao mundo ao seu redor, além de como essas influências podem levar a conflitos psíquicos.
- “A Sociedade do Espetáculo” de Guy Debord
- Resenha: Debord analisa a sociedade moderna sob a lente do espetáculo, argumentando que a realidade é frequentemente substituída por representações e imagens. O livro aborda o consumismo, a alienação e a maneira como a sociedade capitalista molda a subjetividade e a perceção da realidade.
- “Ética, Psicanálise e Sociedade” de Jurandir Freire Costa
- Resenha: O autor entrelaça psicanalise, ética e questões sociais para discutir a formação da subjetividade e da moralidade. A obra propõe reflexões sobre como a sociedade determina o que é considerado “normal” ou “patológico”, e como isso impacta a saúde mental e os direitos individuais.
- “A Rebelião das Massas” de José Ortega y Gasset
- Resenha: Ortega y Gasset apresenta sua visão sobre a transformação da sociedade no século XX, caracterizada pelo surgimento da “massa” como entidade dominante. Ele discute os desafios da democracia, o papel dos intelectuais e como a massificação afeta a subjetividade e a autonomia individual.