DEPRESSÃO, “a dor de existir”– Parodiando Lacan, em diálogo com o “sujeito do inconsciente, do desejo” – “o que quer a ‘Tristeza’ de mim, para que eu possa me reconhecer e me amar?”
INTRODUÇÃO
O sofrimento é inerente à experiência de “ser humano”, de modo especial, o sentimento de sentir-se só, muitas vezes, fragilizado/despedaçado, dado à insatisfação, à incompreensão, à frustração, frente às limitações da vida. A experiência da singularidade, valorizada à maneira freudiana/lacaniana, pode ser, um dos caminhos, recomendável, para se compreender, se reposicionar e se catalisar, decompondo a “dor de existir”.
“Tudo o que você ama provavelmente será perdido, mas no final o amor voltará de outra forma” (Kafka).
Em síntese, trata-se de discernir o sentido substancial do sentimento, “inconsciente”, de sentir-se culpado/triste diante dos reveses da vida.
De acordo com Stella Jimenez, o desejo constitui “a primeira e única riqueza do ser humano” – quando se desiste do desejo, a existência desiste da “fruição do afeto”, deste modo, aquele que desiste estará condenado a ser “gauche na vida”, segundo a melancólica expressão drummondiana.
Então, se faz necessário, novos processos de aprendizagem, reaprender a conectar os pontos, lançar as redes em “correntezas arrojadas”, em “águas profundas e turvas”, se a intenção é decifrar o enigma do sentido persecutório da infelicidade.
Só peixe que “morre pela boca”, boia e desce rio abaixo. Aquele que “luta pelas palavras”, disponibiliza-se ao privilégio, de enxergar, falar, fazer e ser diferente. Quiçá, ser feliz!
Nada(r) na diferença… navegar – depressão, a dor existe
Quando se tratar de tristeza, sofrimento, depressão, pode-se bater à porta das neuroses, psicoses e perversões – dívidas “psicanalíticas” ao ” ressignificado” conceito do complexo de Édipo. Quanto ao “cerne da questão”, existe realmente uma diferença entre o olhar da psiquiatria para a depressão e a escuta da psicanalise para a melancolia.
Dizem que “o homem triste é o homem profundo e que nem sempre a alegria é rasa”, faz sentido e/ou é retórica de literatura, de “Titãs”, – “O quê? Que não é o que não pode ser que …” (Titãs, 1986).
“Das correntezas arrojadas” (…) – depressão, a dor existe
lamentavelmente, a geopolítica do mundo atual se apresenta ao avesso do encantamento, à semelhança de cristais em caleidoscópio.
Fragmentos de encontros e desencontros, multiplicam a seletividade dos olhares egóicos e imperialistas, criando condições cada vez mais, inóspitas, a quem precisa viver.
Guerras ideológicas alimentam cenários inimagináveis. Vírus criados em laboratórios, verdadeiras armas de destruição em massa, mudam as relações de força, poder e liberdade no mundo de hoje, impactando terrivelmente, na qualidade de vida, no futuro das novas gerações e no ecossistema planetário.
No meio da caminho, o fenômeno agonizante das barreiras fronteiriças, aos migrantes que se deslocam dos “porões periféricos”, de regiões desertificadas, fugindo da fome e da miséria. Essa multidão desorientada, deseja viver, do mínimo decente, pelo menos, matar a fome da dignidade, do direito de existir.
“Das águas profundas” (…) – depressão, a dor existe
busca-se mais oxigênio – flexibilizações, transparências, fome de justiça, pão, moradia, saúde, educação, liberdade de expressão, mobilidade social, territorial e novas expressões de sexualidade.
Busca-se menos dependências tóxicas e mais distância – de culturas conservadoras, crenças fundamentalistas, autoridades arbitrárias e ditatoriais, organizações corporativistas manipuladoras, et cetera, etc.
Cada vez mais se experimenta a solidão, a miséria e violência, provocadas por interesses de lucros e enriquecimentos acelerados, muitas vezes, ilícitos/desonestos.
“Das águas turvas” (…) – depressão, a dor existe
eis que surge uma minoria esperta e usurpadora – fora da curva, gananciosa e depredadora, de empresários e pessoas jurídicas, de Estados governamentais inescrupulosos, que simulam a defesa do bem de todos e na verdade armazenam, em benefício próprio, em detrimento de uma maioria desorientada e desorganizada, a ser explorada e colonizada, empobrecida e escravizada, desumanizada.
Diante deste cenário, onde prevalece a experiência de submissão e exploração, vê-se a dignidade abalada, marginalizada, abafada – a fome e o desespero gerando desconforto e conduzindo multidões a um estado de estagnação, à beira de uma tristeza, próximo a um “suicídio coletivo”, que precisa ser denunciado, compartilhado e dia após dia – ecoado.
A realização pessoal, profissional e familiar custa a chegar e muitas vezes, não acontece. O sentimento de culpa pelo não sucesso, então, cria o clima do mal-estar, da civilização.
“Da infelicidade” (…) – depressão, a dor existe
a “doença da modernidade” se revela na depressão – perda paulatina, do sentido da existência. Basta ver o sentimento de tristeza nos olhares e nos movimentos de hordas, em ondas migratórias, a morrer, em alto mar e nas praias continentais, fenômeno mundial e de consequências imprevisíveis, irreparáveis. Impossível compreender a morte, de modo especial, de crianças, sem se revoltar.
O pagamento altíssimo por este pedágio existencial, retira do ser humano, o que em sua essência, deveria torná-lo singular, sua capacidade de fazer o outro existir. É na atualidade e será, em futuro próximo, o grande desafio à comunhão dos povos, à convergência dos cidadãos deste planeta, chamado carinhosamente de Mãe-terra.
Trata-se da luta pela “transfiguração da angústia em alegria” ainda que a humanidade se veja, em pleno século XXI, cambaleante, em direção à distante “sede pela solidariedade”, pelo sentido à vida, de cada um e de todos.
Pelo olhar da organização sócio-política
– o sujeito se vê desgovernado, muitas vezes, por lhe ser negado, direitos ao seu protagonismo e bem-estar.
Por outro lado, a cidadania , se reconhece manipulada. Migalhas de mentiras, “travestidas” de verdades, caem das mesas, em “fartos banquetes de lagostas e bons vinhos”, falaciosamente justificados, por retóricas inescrupulosas. “Políticos honestos” e “bem intencionados”, verdadeiros “semi-deuses”, ainda “blasfemam” ao falar em nome do povo e acreditam, viver no país de Cocagne. “Tudo é incrível nesta terra absurda (…) A coragem das coisas novas não vem de chofre. Leva tempo para formar-se”(LOBATO, 1946).
Faz-se necessário, reverter, extirpar e higienizar os espaços públicos, eivados de falsos discursos, promessas efêmeras, sorrisos ardilosos e banquetes debochantes.
Pelo olhar da organização sócio-religiosa
– na religiosidade, na experiência do fenômeno religioso, no misticismo, o sofrimento, muitas vezes é considerado como ponto de partida/chegada.
A narrativa religiosa apresenta a criação do homem/mulher, no contexto do “triste-desejo”, trata-se do afastamento da criatura de seu criador, característica da imperfeição humana, (acídia). À alma, à época medieval, se atribuía ao espírito de tristeza, o clima necessário para interiorização, quando o crente se punha à procura do sentido da existência , no sobrenatural.
A experiência de culpa/reconciliação, em muitas crenças religiosas, é um dos caminhos para se chegar à felicidade, curiosamente o seu ponto de partida é a ideia da perda, ainda no “paraíso”, daquilo que faz o ser humano feliz.
Pelo olhar da psicanalise
– faz parte da vida do ser humano a experiência da alegria e da tristeza. Evidentemente, que na balança da existência, em tese, deve pesar mais, o prato da alegria, mas nem sempre se tem a sensação afetivo-psíquica que esta lógica possa predominar, na realidade, dia a dia.
Tem-se a impressão que o ser humano precisa se “agarrar” em alguma coisa para superar esse impasse, essa angústia. Em quê, em quem se “agarrar”? A narrativa se limita à perspectivafreudiana/lacaniana, ainda que, aborde Lacan nos desdobramentos de conceitos enriquecedores à compreensão da singularidade, frente ao sofrimento.
Freud, em O mal-estar na civilização, aborda o sentido da felicidade como “fenômeno episódico”, dada à limitação da existência, chegando mesmo a passar a ideia de pessimismo, de algo quase impossível. O mal-estar, segundo a narrativa de Freud, à sua época – hoje em dia, se mantém presente, com acréscimos de novos agravantes, decepcionantes.
O desdobramento da vida orgânica para uma vida menos instintiva, mais cultural, humanitária e espiritual, tem paradoxos, por vezes, massacrantes e incompreensíveis. Como entender a brevidade da vida, de sua transitoriedade, efemeridade, quando a própria vida se encontra mergulhada no oceano de tristeza? Freud diz da transitoriedade, da penosidade, quando se refere à retirada da libido dos objetos perdidos.
A limitação do tempo do prazer, na experiência de Freud, diante de um breve encantamento, no caso, da beleza de uma flor, diz ele, só aumenta o valor da fruição. A brevidade da vida, na experiência do luto do ente querido, não rouba da vida o seu encantamento. Ainda que, segundo Freud, no inconsciente, a sensação que se tem da vida, é e será, sempre de imortalidade.
O que quer a tristeza de mim – depressão, a dor existe
(…) quando se instala na alma do ser humano e se expressa por meio da melancolia ?
“Melancolia é um estado psíquico de depressão com ou sem causa específica. Caracteriza-se pela falta de entusiasmo e predisposição para atividades em geral”. Na obra de Freud, Luto e Melancolia, não havia uma distinção clara entre melancolia e depressão. Esta questão é um tanto complexa e precisa de melhor aprofundamento.
Segundo Freud, trata-se de uma “neurose narcísica – (…) o melancólico exibe um empobrecimento do Eu em larga escala, em que o Eu está desprovido de valor, incapaz de qualquer realização e moralmente desprezível (…) no luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio eu”.
“A melancolia se caracteriza por um desânimo profundamente penoso, cessação de interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar, inibição de toda a produtividade, e uma diminuição dos sentimentos de auto-estima – “sentimento de estima de si” – a ponto de encontrar expressão em se recriminar e em se degradar, (Érica Siqueira)”.
Em síntese, na experiência da melancolia, o eu se empobrece e se apequena ao desconhecer o que lhe foi retirado da consciência. Sabe que perdeu, mas não sabe o quê, sente-se preso a uma fatalidade e não sabe como resolver.
O que quer a tristeza de mim – depressão, a dor existe
(…) quando se instala na alma do ser humano e se expressa por meio da depressão?
“Depressão e melancolia são compreendidas como sinônimos. Atualmente, usa-se mais “depressão”, no passado (Freud) usava-se “melancolia“. Alguns autores defendem a ideia de que o conceito “depressão” não se apresenta dentro de uma estruturafreudiana.
Segundo Freud, entende-se por depressão, as “limitações das funções do eu, fugas – por precaução ou por empobrecimento de energia”. Na experiência da depressão o sujeito tem consciência da origem de seu mal-estar, portanto, em condições de procurar soluções.
Deste modo, o querer da tristeza depressiva se supera no propósito de – não se abrir mão do desejo. O sentimento de culpa sempre aparecerá quando o desejo não for alcançado (angústia de realização). Somente no tempero da expressão do afeto, a depressão encontrará o caminho das pedras, para superar a tristeza.
Bom acrescentar, que quando se fala em melancolia, fala-se a partir de uma subjetividade vinculada ao narcisismo – não aceitação da perda (psiconeurose). Quanto à depressão, segundo Freud, é um sintoma que pode estar em qualquer estrutura psíquica (sentimento de diminuição pessoal).
Quanto à depressão na área psiquiátrica, entende-se uma “psicopatologia” classificada nos manuais de psiquiatria.
Portanto, trata-se de dois conceitos,
(…) em contextos diferenciados, não se relacionando mutuamente , mas se completando (Rocha, 2008). A subjetividade frente às condições da vida atual, experimenta tanto a melancolia como a depressão. Ambas podem interferir e causar mudanças nos sentimentos. Cabe aos profissionais da área da saúde, as diretrizes assistenciais.
Segundo Lacan – o melhor remédio para a angústia é o desejo. O mal-estar, presente na realidade do ser humano, tempera as relações e dá um sabor de entusiasmo, sabedoria e felicidade à dor de existir, desde que, “se aprenda a perder o que se ama, na certeza, de que ele poderá voltar, de outra forma”.
“O que quer o Outro de mim, para que eu possa me reconhecer e me amar?”
“Quem, dentro de si mesmo, um Paraíso não for capaz de encontrar,
não será capaz também de, um dia, nele entrar…” (Ângelo Silésio).
FLORIPA, 15.08.23
Referências básicas
- “O Mal-Estar na Civilização” de Sigmund Freud – Resenha: Nesta obra magistral, Freud investiga as tensões entre as demandas da sociedade e os impulsos individuais. Ele argumenta que a civilização restringe as liberdades individuais e, assim, origina um perene sentimento de desconforto nos seres humanos. A busca pela felicidade é constantemente barrada pelas estruturas da sociedade, o que leva ao surgimento de sentimentos como culpa e frustração.
- “Os Quatro Amores” de C.S. Lewis – Resenha: Lewis, neste livro profundo, analisa diferentes tipos de amor: afeição, amizade, eros e caridade. Ele discute os prazeres e perigos de cada um e como o amor verdadeiro pode levar ao sofrimento. O autor reflete sobre a natureza inerente do sofrimento humano na busca pelo amor verdadeiro e como esse sofrimento pode ser redentor.
- “Édipo Rei” de Sófocles (numa perspectiva psicanalítica) – Resenha: Apesar de ser uma peça de teatro, a história de Édipo é fundamental para a psicanalisefreudiana. A narrativa do rei que, sem saber, mata o pai e casa-se com a mãe, reflete os complexos inerentes ao ser humano e o sofrimento que surge do confronto com o destino e o autoconhecimento. A leitura psicanalítica da obra ressalta os sentimentos de culpa, o desejo inconsciente e o conflito interno.
- “O Lago da Lua” de Clarice Lispector – Resenha: Clarice, com sua sensibilidade única, aborda nesta obra os sentimentos mais íntimos e profundos do ser humano. Ela explora as aflições, as alegrias, os desejos e as frustrações que permeiam a existência. Por meio de uma série de crônicas, a autora mergulha nas nuances do sofrimento humano e na busca incessante por sentido e conexão.
- “O Seminário, livro 11: Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise” de Jacques Lacan – Resenha: Neste trabalho, Lacan explora os conceitos fundamentais da psicanalise, incluindo o objeto “a”, o inconsciente, a repetição e a transferência. Ele discute a natureza do desejo humano e como ele é moldado e limitado pela linguagem. A obra é essencial para quem busca compreender a natureza complexa do sofrimento humano sob uma ótica lacaniana.
O que é o sofrimento?
O que é a melancolia?